Quem acompanhava a música baiana já tinha ouvido falar, mas pouco conhecia do grupo O Quadro. Formado em Ilhéus há mais de uma década, o grupo não tinha um registro oficial lançado, apenas músicas soltas. Finalmente em 2012, O Quadro lançou seu primeiro disco, homônimo, reunindo uma parte de músicas do início da formação e outras mais recentes. A formação, não tão comum para um grupo de rap, traz Rodrigo Dalua, na guitarra e synth, Victor Santana, na bateria, Jahgga, na percussão, Ricô, no baixo e efeitos e Jef, Freeza e Rans nos vocais. Foi com os três MCs, que o el Cabong conversou logo após o show no festival Stereo Sul, em Itacaré, a segunda casa da banda. A banda prepara agora seu primeiro clipe, da música “Evolui”, e programa shows em Salvador e Vitória da Conquista para os próximos meses. Agenda ainda tímida para o surpreendente disco de estreia, mas que já rende bons frutos. Além de elogios, o baixista Rico está no Rio, gravando o novo projeto de Yuka (ainda ex-Rappa, para os menos sintonizados), ao lado de nomes como Pupilo, João Barone na bateria, Cibelle e Seu Jorge. Nada mal.

…………………………….

O QUADRO El Cabong: Queria que vocês começassem falando da trajetória de vocês. A banda tem 11 anos, não é?

O Quadro: Mais, 16, quase. A gente começou a escrever, eu, Jeferson, quando a gente se conheceu, em 1994. Juntos, já tínhamos essa questão de escrever, fazer rima. Participamos de um Festival de Talento da Escola Pública, em 1996, e demos o primeiro passo para essa idealização de uma banda, né. Na formação original, naquela apresentação, tínhamos um baterista, que era baixista e o percussionista, que era percussionista, eu e Jeferson. Aí depois fomos agregando outros valores, Frizza veio de Ipiaú, uma cidade perto daqui e, entre o final de 2001 e início de 2002, nós consolidamos essa formação, e estamos aí até hoje.

 

El Cabong: E como se deu essa coisa de não ser uma banda tradicional de rap?

O Quadro: Na verdade, por improviso, mesmo, por carência tecnológica. A gente não tinha acesso aos equipamentos que normalmente o rap tem, não tinha acesso a toca disco MKII, não tinha mixer, não tinha MPC, não tinha computador. O que a gente tinha, eram os instrumentos que os amigos tinham. Porque tinha essa coisa da cultura da música. Na Bahia, ao menos em Ilheus, tinha essa coisa assim: que quem não curte axé, arrocha, pagode, forró, acaba se encontrando. Então é o roqueiro que se encontra com o regueiro, acaba se identificando por estar à margem. Então a gente acabou utilizando os instrumentos orgânicos. É comum ir em uma loja de eletrodoméstico na Bahia e encontrar um violão e uma guitarra sendo vendidos, ou um tecladinho. Então pra gente foi assim. Não foi como “Ah, vamos organizar uma banda de rap que seja orgânica”. Foi falta de opção, mesmo. Carência tecnológica, questão de necessidade mesmo. Quer queira, quer não, a gente tem aqui na Bahia uma das maiores indústrias da música brasileira, o Axé Music é isso. Com isso, você pode encontrar um pandeiro numa mercearia, um timbau em um armarinho. Você tem acesso aos instrumentos, a um bom preço, ainda que necessariamente não sejam de boa qualidade.

El Cabong: Em Salvador a gente tem muito claro essa força axé. Queria que vocês me falassem como funciona isso aqui, como é enfrentar isso?

O Quadro: Salvador é a capital e o interior reflete o que vem de lá. As merdas e as coisas boas. Então aqui é uma sucursal da grande indústria do axé. Candeias oferece Silvano Salles e Pablo, eles tocam aqui com status de popstar, meu pai. Então, o que vem de lá, reverbera aqui, mais amplificado ainda, então, se lá é difícil, aqui é mais ainda. Porque bater de frente com essas coisas que vem de fora, com o know how da capital, de Salvador, é mais difícil, as pessoas tem mais resistência, mesmo. Aliado a isso, tem o movimento do arrocha, que é muito surpreendente. Eu venho de um distrito chamado Banco Central, onde o axé music não toca. Só toca arrocha, nem pagode toca mais lá. Não existe mais axé music pro povo, isso se tornou coisa de classe média. O povo é o arrocha e o pagodão e, no interior, o arrocha é ainda mais forte.

El Cabong: E essa dificuldade, essa demora de lançar o primeiro disco, foi por causa disso? Como foi esse processo?

O Quadro: Rapaz, primeiro que a gente é lento, também, a real é essa, a gente é devagar. Porque primeiro a gente fazia um som, numa coisa de amigos fazendo um som, leve. Depois a gente começou a levar à sério, foi quando percebemos que não conseguiríamos viver sem isso. Pensar a possibilidade de trabalhar e pagar as contas com isso soava perfeito. Só que fazer rap, em qualquer lugar do Brasil, já é difícil, existe poucos artistas de rap no mainstream. Fazer rap, no interior da Bahia, é ainda mais foda, sacou? Mas é isso, é difícil em qualquer lugar do mundo, fazer uma música como arte, com cara própria, uma música original. É difícil aqui, é difícil em Nova York, é difícil na Nigéria.

 

El Cabong: Eu queria que vocês me falassem como foi o processo do disco, a concepção, a composição…

O Quadro: A questão é a seguinte, nós tínhamos já algumas experiências em estúdios na universidade (UESC) e em estúdios caseiros. A gente tinha plena consciência de que aquilo que a gente tinha gravado não reproduzia com fidedignidade aquilo que a gente era, que a gente queria apresentar como produto e aquilo que a gente gosta de ouvir. Então foi necessário criar outras vias de acesso a recursos, através de editais de incentivo à cultura. Tivemos a oportunidade de gravar em um estúdio de verdade, com qualidade boa, produtores e masterizadores bons.

El Cabong: A as músicas? Como o processo criativo?

O Quadro: Foram 15 anos de gestação. Temos músicas que criamos desde o começo da banda no álbum, mas não exatamente como eram no começo, algumas, até mesmo no momento da gravação, sofreram alguma mudança. Em uma gestação de 15 anos, cada mês é importante, certo?

El Cabong: E essa influência de outros sons? Dá para notar que o rap de vocês é bem diferente do padrão, tanto da gringa, quanto do Brasil.

O Quadro: Vou te falar, eu sou um cara 100% hip hop, e é justamente por isso, que eu me sinto na obrigação de conhecer tudo, escutar tudo. O rap é feito de sampler, em sua raiz, e quando você faz uma música de sampler, você tem que conhecer uma infinidade de músicas, ampliar as possibilidades. Por exemplo, da cultura hip hop, uma das primeiras coisas que eu escutei foi “Planet Rock”, do Afrika Bambaataa. Essa música tem um sampler de um grupo de música eletrônica alemão chamado Kraftwerk, quer dizer, um rap me levou a conhecer Stockhausen. Assim como eu escutando “Um Homem na Estrada”, que descobri que é Tim Maia, “Ela Partiu”. Então através dos Racionais que eu conheci essa música de Tim Maia. Na construção do rap, se destacam aqueles que conhecem mais, e melhor sabem fazer uso desse conhecimento.

El Cabong: Eu concordo plenamente, e é uma coisa que eu sinto falta no rap, essa noção mais clara de que é rap, mas é muita coisa além disso.

O Quadro: Além da coisa do sampler, que é uma coisa do rap mesmo, própria do rap, também tem a coisa da poesia, das referências, das citações. Por exemplo, eu, quando era moleque, lá em Ipiaú, escutei uma música dos Racionais em que o cara falava de Nelson Mandela e, através disso, eu fui buscar Nelson Mandela. Citações a livros, discos, filmes, o rap mostra essa caminho pra gente.

El Cabong: Desperta a curiosidade, né?

O Quadro: É. E existem raps e raps, da mesma forma que o rock é diverso, que pode caber Legião Urbana e Sepultura, o rap é a mesma coisa. Você pode escutar, no rap gringo, 50 Cents e Snoop Dogg e você pode conhecer Antipop Consortium e Talib Quali, que é outra vertente completamente diferente, menos conhecida, menos veiculada na MTV. Então existe uma infinidade de estilos dentro da própria cultura hip hop, que quando você conhece, você fala “rapaz, o que é que é isso?”. É muito grande, muito diverso.

El Cabong: E essa coisa de inserir black, ijexá, várias coisas no som, acaba sendo natural…

O Quadro: Natural, tem muita coisa que a gente ouvia quando criança, quando a gente ia a terreiro de candomblé, via o Olodum, os blocos afros passar na avenida, Ilê Aiyê, Lazzo Matumbi, Luiz Caldas. Aí depois de velho a gente foi descobrir que na Bahia tinha também Antônio Carlos & Jocafi, Hyldon, Glauber Rocha, Mystifier, que era uma banda de metal só de preto, sinceramente black metal (risos).

El Cabong: Gostaria que vocês destacassem algumas músicas do discos e falassem um pouco delas.

O Quadro: (1)“Seja bem vindo ao meu lar”, que é uma música que tem participação de uma grande Mc, que é uma pessoa que a gente tem admiração, que é a Lurdez da Luz. Quando a gente sentou para escrever essa música, eu queria que ela se reportasse a um filme, que quem ouvisse a música se sentisse em um filme, acho que consegui passar mais ou menos a ideia. (2) “Tá amarrado”, é uma música que remete à religiosidade, as questões místicas e subjetivas que nos acompanham e nos fazem enxerga que a vida vai muito além das relações materiais. Fala um pouco disso, do divino, da proteção dos orixás, das energias positivas presentes no nosso dia dia que nos ajudam na nossa caminhada, para conseguir nossos objetivos. (3) “Evolui Bem Aventurados”, que é uma música que fala assim: se quer mudar o mundo, comece mudando a si mesmo, o cume da montanha espiritual, que é você buscar o seu melhor, o seu paraíso em suas ações, em seu ponto de equilíbrio, e antes de apontar, faça esse apontamento, aponte o dedo pro espelho. “Evolui” promove essa reflexão e eu acho que fui feliz na letra, gosto muito do resultado.

El Cabong: A partir do disco, sinto que vocês estão começando a aparecer mais. Como é que tem sido isso? Tem surgido mais convite? Eu vejo que tem muita gente cantando, e isso não acontece toda hora…

O Quadro: Legal, vou te falar que tudo tem acontecido espontaneamente. A gente gravou o disco e quando ele tava pronto e chegou na nossa mão, virtualmente, antes de chegar o disco físico, a gente já liberou na internet, e botou no facebook, e os amigos foram passando pros amigos, que passavam para os seus amigos, e foi chegando nas mãos das pessoas e a coisa foi se alastrando. Foi a música que fez tudo isso. Não teve assessoria de imprensa, não teve produtora, foi tudo independente. Entenda, a gente não está negando a possibilidade de um dia ter uma produtora ou ter uma assessoria de imprensa, a gente quer muito isso, mas até então, foi assim. Agora recentemente a gente ficou sabendo que nosso disco foi citado na Rolling Stone de dezembro, pô, satisfação, saíram duas coletâneas na Europa, agora, uma de música baiana para exportação e outra de bass kutcherconfere se é isso mesmo, tá um pouco depois do minuto 12:30 da gravação e por aí vai, tudo espontâneo, e a gente fica muito feliz com isso, essa espontaneidade é reflexo de um sentimento puro, de verdade. A música tem sido generosa com a gente, a gente tem feito amigos através dela. Um grande amigo que a gente fez foi o Marcelo Yuka, ele ouviu a gente, curtiu, gostou, e acabou que a gente passou horas no estúdio do cara, gravando, conversando e possivelmente vai sair um videoclipe dirigido por ele. Com Guilherme Arantes aconteceu também desse jeito.

El Cabong: Tenho notado um movimento diferente. Antes, havia uma desconfiança, dentro da música baiana, do meio alternativo, com o axé, e uma generalização, também, como se tudo que houvesse batuque fosse axé. Hoje sinto que as bandas meio que fez as pazes com o axé, e a gente vê uma música baiana independente com uma outra cara. Como é que vocês veem isso?

O Quadro: É separar o joio do trigo. O Márcio Vítor do Psirico é um grande músico, ele redefiniu o pagode, e aquela batida é importante para a história da música baiana. Eu nem sempre me identifico com os discursos, pelo contrário, eu normalmente não me identifico, mas eu tenho que saber que aquela percussão ali é bem feita. Esse olhar sobre a arte é o que define o artista, é o que torna ele grande. É saber aproveitar o detalhe, fazer as escolhas que trazem o resultado. É o que recheia e vitamina o artista e faz com que ele bote pra fora apenas a sua seleção natural. O Sepultura já trabalhou com Carlinhos Brown e o Parangolé já usou um solo do Angra